O amor à primeira vista é uma hipnose: estou fascinado por uma imagem: primeiro sou sacudido, electrizado, mudado, transportado, «torpedeado» (...) ou ainda convertido por uma aparição, não distinguindo o caminho da paixão do caminho de Damasco; depois sou iludido, abatido, imobilizado, com o nariz colado à imagem (ao espelho).
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Do outro, o que subitamente me vem tocar (seduzir) é a voz, o movimento dos ombros, a finura do perfil, a tepidez da mão, a forma de um sorriso, etc.
(...) no outro, é a conformidade com um grande modelo cultural que acabará por me exaltar (julgo ver o outro pintado por um artista do passado) ora, ao contrário, é uma certa desenvoltura da aparição que em mim abrirá a ferida: posso apaixonar-me por uma pose ligeiramente vulgar (assumida por provocação); há trivialidades subtis, móveis, que rapidamente passam no corpo do outro: uma maneira rápida (mas excessiva) de afastar os dedos, de abrir as pernas, de movimentar a massa carnuda dos lábios ao comer, de trabalhar numa ocupação muito prosaica (...).
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O que me fascina, me seduz, é a imagem de um corpo em situação. O que me excita é um perfil a trabalhar, que não me presta atenção. (...) Pois a postura do trabalho garante-me de algum modo a inocência da imagem : quanto mais o outro me deixa ver os sinais da sua ocupação, da sua indiferença (da minha ausência), mais eu estou certo de o surpreender, como se, para me apaixonar, fosse necessário realizar a formalidade ancestral do rapto, a saber, a surpresa (surpreendo o outro e, por isso mesmo, ele me surpreende: não esperava surpreendê-lo).
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(...) esta cena tem magnificência: não deixo de me espantar por ter tido essa oportunidade: encontro o que serve o meu desejo: ou ter assumido este risco enorme: escravizar-me de repente a uma imagem desconhecida (...).
Roland Barthes, via
Estado Civil.
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